DIÁRIO DE UMA QUARENTENA (Mira)

3 de maio de 2020 - 09:28, por Claudefranklin Monteiro

Era costume, aos finais de semana, notadamente a partir de sexta-feira à noite, eu me apossar do quarto de meu irmão mais velho. Solteiro, ele saia para as farras e só voltava no domingo. Nesse ínterim, ele me dava a condição de fazer de seu espaço, meu também. Além da cama de casal, era no primeiro andar da casa (Travessa Municipal, 33) e tinha um som três em um Polyvox (vitrola, rádio e toca/gravador de fita). Hoje, o som é meu e orgulhosamente repousa em minha sala de TV. A vitrola não funciona mais, mas os demais componentes sim.

Ele comprou o som com o segundo salário que recebeu como funcionário público do Governo de Sergipe. Ele era professor. O primeiro salário, ele deu todo à mamãe, como manifestação de sua gratidão. Logo que o aparelho de tocar CD chegou, compramos um e acoplamos ao possante Polyvox. Era a segunda metade dos anos 90 e eu já trabalhava como professor e ajudava em casa.

Meus primeiros CDs foram doações carinhosas. O primeiro foi uma coletânea de Milton Nascimento, da professora Áurea Samaia, que era minha aluna no Colégio Laudelino Freire. Depois, vieram mais dois. Outras duas coletâneas: Belchior e Paulo Diniz. Esse segundo marcou profundamente aquela fase de minha vida, em que estava resolvendo minhas escolhas amorosas, que resultaram no casamento com Patrícia Monteiro, no dia 14 de fevereiro de 1998.

No quarto de meu irmão, costumava abrir o som. Era límpido e potente. Minha mãe, Dona Claudemira (Mira), gostava e vez ou outra me pedia para executar uma canção, preferencialmente Não se vá, da dupla Jane e Herondy (1977). Querendo cada vez mais conhecer a obra de Paulo Diniz, eu adquiri o segundo volume da coletânea Meus Momentos (1997). Na manhã que coloquei o CD no Polyvox para ouvir a nova aquisição, uma canção em especial chamou a atenção de minha mãe. A faixa 3 (Maria das Dores).

Ao descer do quarto de meu irmão, minha mãe com ternura me disse: “Frank, gostei muito daquela música de Maria das Dores. Acho que ela fala de mim, de minha vida. Eu sou a Maria das Dores”. Fui analisar a letra e não havia encontrado relação dela com minha mãe. Com o tempo, fui compreendendo que ela se referia às dores. Ela se identificava e se definia como uma Maria das Dores.

Mamãe casou muito cedo, aos 16 anos. Por isso mesmo, mão teve tempo de concluir os estudos primários no Colégio das Freiras. Era filha de família abastada. Meu avô, Raimundo Nonato havia enriquecido com a lavoura, sobretudo com o fumo, e ostentava um lindo casarão na Praça da Piedade, hoje anexo da Prefeitura Municipal.

Meu pai, de origem humilde, como já disse em outra ocasião, era proprietário de um bar e mercearia e recebia uma ajuda de custo (não havia salário), para exercer a condição de vereador. Para nos criar, eles ralaram muito. Antes de se estabilizar como comerciante e político, papai fez de tudo um pouco. Na juventude era jogado de futebol amador. Logo, a vida da minha mãe, como se vê, não foi fácil. Foi a típica dona do lar, dedicada exclusivamente ao marido e aos filhos.

Ficou viúva aos 47 anos de idade, com sete filhos para criar, a maioria ainda menor. Passou maus bocados, mas nos deu dignidade na criação. Ela sofreu muito a ausência de meu pai. Era apaixonada e sentiu o peso cruel da solidão. Pouco anos depois, foi adoecendo. Era obesa e passou a apresentar problemas nas articulações e ossos. Teve reumatismo e osteoporose e após operar os dois joelhos, não suportando a recuperação, passou os últimos dias da sua vida, 15 anos para ser mais exato, numa cadeira de rodas.

Eu tinha uma intimidade muito grande com ela. Brincava muito, pois queria vê-la sorrir. Chamava ela de “mãedioca” e ela de dizia que estava mais para manipueira. Fazia inúmeras presepadas para lhe ver feliz, ainda que momentaneamente. Com o falecimento de meu irmão mais velho, ela durou somente mais sete meses e ficamos ainda mais próximos. Ela me confidenciou muita coisa e eu não percebia que estava se despedindo a cada noite ou manhã que passava em sua casa para vê-la, não importasse se alguns minutos ou algumas horas.

Eu tinha ojeriza à caixão e a defunto. Ainda tenho. Por isso, dizia a ela que não gostaria de vê-la morta. Queria guardar lembranças dela em vida. Mas ela profetizava que iria morrer em meus braços. Se assim não o foi, literalmente, deu-se de forma representativa. Pelos meus braços, seu corpo saiu da maca e foi depositado no caixão. Do caixão para a sua cama e os preparativos para o enterro. E novamente, dos meus braços para o caixão. Ela dormia serenamente e seu rosto inerte me fazia lembrar a profecia cumprida.

Minha mãe foi uma pessoa extraordinária. Eu não suportaria metade do que ela viveu. Dos sofrimentos físicos e da alma. Ela era cristã, mas tinha reservas sobre a existência de um céu. Eu dizia para ela que se ela não fosse pra lá, ninguém mais iria. Ela sorria e me perguntava: “Frank, tem aparadeira (objeto feminino para colher urina) no céu?” Também me perguntava se iria voltar a andar e se haveria dores e remédios, pois não aguentava mais tomar tantos.

Eu amava as frases e tiradas delas, algumas guardo e até uso eventualmente. Sobre política partidária, ela dizia: “Quer subir, suba na mãe”. Sobre quem não tinha noção do futuro, ela expressava: “Hoje por mim, amanhã por ti”. Ou ainda: “Quem tem com quem me pague, não morre me devendo”. Ela virava uma leoa quando falavam mal dos filhos dela ou vinham fofocar ou dar palpite sobre a criação. Além disso, era imperativa, sabendo dar ordem e conduzindo os subordinados com êxito: “Frank, lave os pratos”; “Frank, coloque o lixo pra fora”.

Minha Maria das Dores era forte! No final da vida, estava um graveto pálido na cadeira de rodas, mas sempre preocupada com o asseio, sobretudo com o cabelo curto, já tomado quase todo pela alva. Era surpreendente, pra frente e teve que superar convenções sociais para proteger seus filhos e vê-los felizes. No dia em que meu irmão foi sepultado, quando o féretro estava para sair de nossa casa, ela me chamou e disse no ouvido: “Vá lá no quarto de seu irmão, ligue o Polyvox e coloque aquela música da Estação Primeira de Mangueira. Abra o volume no máximo”.

A canção a que minha mãe se referia tem o trecho a seguir como principal e traduzia bem aquele momento para ela e para meu irmão e também para todos nós: “Quem plantar a paz, vai colher amor”. Aquele gesto inusitado revela um pouco do que foi Mira, Dona Claudemira, referenciada com muita saudade, mas também com muita gratidão.

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