DIÁRIO DE UMA QUARENTENA (EUTÍMIA)

9 de maio de 2020 - 18:31, por Claudefranklin Monteiro

Até o final dos anos 70, eu morava num casarão da Praça da Piedade, hoje anexo da Prefeitura Municipal de Lagarto, cuja fachada, do final do século XIX, foi preservada na última reforma. Dentro, apenas uma parte do revestimento original, de pedra, pode ser avistada a esquerda de quem entra no prédio. Ali, salvo engano, era o quarto de meu irmão mais velho.

A casa era enorme, com vários cômodos, todos eles em torno de cinco ou mais metros quadrados. Sua largura e extensão também eram consideráveis. O fundo ficava para a Rua Mizael Vieira, onde havia um quintal enorme, com um jardim, banheiros, dispensa e um tanque para reservar água da chuva, bem construído, de alvenaria. Eu morria de medo desse tanque e ao mesmo tempo tinha muita curiosidade em vê-lo. Vez ou outra, um adulto me colocava em suas bordas para eu apreciar o grande volume de água.

            Nascido em 1974, eu devo ter vivido pouco menos de cinco a seis anos naquele lugar. Mas guardo excelentes e marcantes lembranças. A mais antiga, acho que eu ainda era de braço, quando minha mãe escorregou num limo do piso do quintal e caiu comigo sobre ela. Outra, quando eu me desiquilibrei de uma lavanderia e machuquei os joelhos. Não sei se tem alguma relação com a cirurgia que fiz no joelho esquerdo em setembro de 2019, mas vivia machucando os joelhos quando era menino. Talvez um prenúncio (risos).

            Foi ali que ganhei o primeiro cinturão. Meu irmão mais velho, chegou de viagem dizendo que tinha trazido uma cobra pra mim. Achei que era outra cobra de brinquedo que eu tinha e que se mexia quando a segurava pela calda. Era um embrulho quadrado, do tamanho da palma da mão de adulto. Ao abrir, estava lá o meu primeiro cinturão, de cor preta, enrolado em torno da fivela prata, que usei em várias ocasiões, a exemplo da formatura do ABC de minha irmã mais nova, Claudicleide, no Colégio das Freiras. Perdão, mana, mas no dia de entrar com você no recinto, dei uma travada e chorei, tendo que ser substituído por uma criança que estava na ocasião. Nossa foto ficou tão linda, Claudicleide! Apesar de minha carinha emburrada.

            Certa feita, quando eu tomava minha mamadeira, geralmente num sofá que ficava entre a sala e a cozinha, com as pernas para o encosto e as costas no acento, um macaco (mico/saguim) que Claudemir criava começou a mangar de mim, imitando o gesto de sorver aquele gostoso leite preparado com muito carinho por mamãe. Não deu noutra: caí a chorar, a reclamar da presepada do macaco. Também ali, naquela sala, realizei uma peraltice que quase me custou a vida. Peguei o rádio portátil de meu pai e enfiei a antena na tomada. Fui arremessado a uma distância de pelos menos dois metros. Graças a Deus, foi só um susto: eu e o rádio ficamos intactos.

            Ao final do ano, quase sempre, recebíamos a visita de nossos tios de Fortaleza, irmãos de minha mãe: Tia Maria do Carmo, seu marido, Tio Sebastião, e filhos; Tio Jacó, sua esposa, Tia Célia, e filhas. Era uma festa quando se reunia aquela turma toda, uma meninada sem fim, que brincava com sem pressa no palanque da Praça da Piedade. Geralmente era tempo de Natal e éramos mimados com inúmeros brinquedos. Lembro com muita alegria de ter recebido numa dessas ocasiões um trator de plástico de cor verde e pneus pretos. Brinquei tanto que se gastou.

            Até nos mudarmos para a Travessa Municipal, número 33, que ficava na esquina da mesma quadra da casa da Praça da Piedade, lembro que as novelas já faziam parte do cotidiano das pessoas e eram muito comentadas pelos adultos. Entre elas: Pecado Capital (1975), Casarão (1976) e Sol de Verão (1982), quando da morte, durante as gravações, do ator Jardel Filho. Eu sempre fui dado a ficar próximo de pessoas mais velhas do que eu, por isso, adorava ficar no entorno delas e, de aguçada curiosidade, captar o que falavam.

            Aquele casarão da Praça da Piedade[1] era de meus avós maternos: Raimundo Nonato dos Santos e Eutímia Bemvinda dos Santos. Meu pai, minha mãe, eu e meus irmãos moramos ali por algum tempo, até o falecimento de vovó Eutímia, em 1978. Vovó Eutímia era viúva de vovô Nonato (Sinhô Pança) e cega dos dois olhos, em função do agravamento do glaucoma. Daí a necessidade da assistência dos filhos, notadamente de minha mãe e sua prole de sete filhos.

            Eu não conheci meus avós paternos: Antônio Monteiro de Carvalho e Alice Menezes Monteiro. Quando eu nasci, vovô Nonato já havia falecido (1967). Vovó Eutímia é de quem guardo mais lembrança e com quem vivi alguns episódios que ainda estão muito vivos em minha memória, apesar de à época ter apenas quatro a cinco anos de idade.

            Eu tenho uma foto bebê em seu colo. E todas as vezes que vejo aquela foto ou a mostro para meus filhos, recordo-me com clareza de algumas situações. Ficava a observá-la comendo mingau de puba. Ela já não tinha mais dentes à altura de seus 76 a 77 anos. O mingau ficava rolando na boca sem descer, como se tivesse mascando chiclete ou ruminando. Muitos anos depois, ao lembrar disso para mamãe, ela me dizia que vovó Tina andava com muito fastio, triste e se entregando.

            Outro dia, sabendo que ela era cega, fui ao seu quarto de ponta de pé para lhe pregar uma surpresa, frustrada antes mesmo da conclusão. Sentindo meu cheiro, ela perguntou: “Frank, é você que está aí?” Lembro de ter ficado espantado com a sua descoberta, mas logo me pus a rir. Eu visitava seu quarto com frequência. Ironia do destino ou providência, nos anos que passei em Aracaju, morando na casa de Tio Tonho (um de seus filhos), dormia na mesma cama de solteiro que ela usou até seu falecimento.

            A recordação mais dolorosa é a do dia de seu velório. Eu travei no quarto quando soube e não quis sair de jeito nenhum. Salvo engano ainda dormia num berço, apesar de não ser mais bebê. Mas naquele casarão, havia berços enormes e camas para acomodar tanta gente. Lembro, somente, de vê seu caixão passar e me despedi de longe, nos braços de um adulto do sexo masculino do qual não me recordo mais o nome.

            Muito anos depois, dois episódios mantiveram a minha conexão de memória e de alma com vovó Eutímia. Um, quando acidentalmente encontrei os olhos de vidro dela numa das gavetas de meu irmão. Infelizmente, ela não se adaptou às próteses e preferia ficar sem elas. Outro, quando padinho Cláudio me presenteou com a corrente de prata que ela usava. Infelizmente a pedir num mergulho no rio nas divisas entre Lagarto e Riachão do Dantas, num terreno da família da saudosa Laura Vieira.

            Na família, duas parentes tem o nome de vovó. Minha prima Eutímia, filha de Tio Zé (Colônia Treze, Lagarto), por quem nutro um enorme carinho e afinidade, apesar das distâncias naturais em razão do trabalho. E Francisca Eutímia, nascida em 1986, filha adotiva de Tio Tonho e Tia Jovina, de quem não tenho mais notícia desde os anos 90, quando, segundo notícias, voltou a viver com a família de origem.

            Pois bem. Mas que nome tão incomum é esse? Pensava eu. Cuja sonoridade além de peculiar é também tão singular. Mergulhando na etimologia achei informações que vão encontro do que foi vovó. Eutímia é de origem grega (eu=normal; timo=humor). Na semântica, diz-se de pessoa perfeitamente tranquila, serena, de sereno contentamento. Tudo que quero e tento ser em vida.


[1] Pela Certidão de Casamento de minha mãe, datada de 6 de fevereiro de 1951, foi ali que ela se casou com meu pai, na presença do Juiz de Direito, Dr. Hélio Moura Cardoso e das testemunhas Sílvio Almeida Santos e Flamarion Carvalho de Oliveira

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